02 dezembro 2017

Zé Pedro







Ontem morreu o Zé Pedro. Eu sabia que ia acontecer. Breve. Estive no Coliseu de Lisboa, dia 4 de novembro, a despedir-me dele. E, no entanto, nada preparado para o dia em que isso acontecesse. No dia a seguir ao concerto, ele disse que estava na luta. E eu acreditei. Estava. Morreu na luta, como viveu. Com uma doçura que só nele podia condizer com a pele punk rock que escolheu para a vida.

Texto de Catarina Pires
Ontem os jornais e as televisões e as redes sociais encheram-se de homenagens ao «roqueiro com alma de punk e sorriso de miúdo», como escrevi numa entrevista que lhe fiz em 2008. Toda a gente tem coisas bonitas para contar sobre o Zé. É raro isso. Mas é justo. O Zé Pedro era único apesar de ter cantado que não. Todo generosidade naquele sorriso que manteve aberto até ao fim.
Não fui a todos os concertos de Xutos, não sei todas as letras de cor (sei algumas), nunca usei o lenço vermelho nem cruzei os braços em X, nem saltei, saltei, saltei (a não ser no Coliseu, no dia 4 de novembro), mas eles sempre estiveram presentes na minha vida, música de fundo, música a que se volta quando é preciso, música que se canta aos gritos, quando faz falta. Por isso, também tenho coisas bonitas para contar sobre o Zé.
Por isso e porque o Zé Pedro era igual ao meu primeiro amor.
O Zé Pedro cumpriu o sonho, apesar de só ter aprendido a tocar guitarra depois de já ter formado os Xutos & Pontapés e de ter atribuído a si próprio o lugar de guitarrista.
De maneira que, quando via e ouvia os Xutos, era só o Zé Pedro que via e ouvia. O puto que um dia chegou a casa e anunciou que ia ser uma estrela do rock. A mãe entusiasmou-se, o pai, amante de jazz, condescendeu num sorriso de ombros encolhidos, os seis irmãos aplaudiram como sempre e para sempre. Mas ninguém duvidou. E Zé Pedro cumpriu o sonho, apesar de só ter aprendido a tocar guitarra depois de já ter formado os Xutos & Pontapés e de ter atribuído a si próprio o lugar de guitarrista.
«Lá fora era o auge do movimento punk, que tinha como lema o “faça você mesmo”», explicou-me ele na entrevista que lhe fiz, e à irmã Helena, em 2008. «E sob esse estado de espírito as pessoas desataram a fazer coisas, vivia-se uma revolução cultural em que a arte era restituída ao povo, a quem deve pertencer realmente, e não a uma elite de subsidiados, que faz arte para o seu umbigo. O punk trouxe a liberdade artística a toda a gente.»
Terá sido a liberdade que pautou os sessenta e um anos de vida e 40 de música deste roqueiro com alma de punk e eterno ar de puto que, para desgosto do pai militar não foi à tropa por falta de peso, a quem o 25 de Abril de 1974 exortou a libertar o mundo, qual Che Guevara, a começar pelos Olivais, onde cresceu, integrando os vários movimentos de libertação do bairro que se criaram no rescaldo da revolução, e que achava que o seu principal problema, no início, era não saber afinar guitarras. «Felizmente apareceram os afinadores automáticos…»
Foi graças à biografia que a irmã Helena Reis, onze meses e um dia mais velha, escreveu – Não Sou o Único (Ed. Presença) -, que conheci o Zé Pedro e o entrevistei, no Hard Rock Café, em Lisboa, há nove anos. Mais de uma hora de conversa que, quando chegou ao fim, percebemos, não tinha ficado gravada. Perante o pânico estampado na minha cara, o Zé Pedro e a Helena: «vá, não há problema, repetimos tudo, ‘bora.»
E repetiram. A entrevista fica aqui, para quem quiser lê-la.
Obrigada, Zé Pedro. E obrigada também por, há dois anos, quando os meus filhos foram aos bastidores do Palco 25 de Abril, na Festa do Avante, pedir-te um autógrafo, teres ficado à conversa com eles. Deve ter sido fixe a conversa, porque se esqueceram do autógrafo. Mas de ti não. Nunca se esquecerão. Nem eu






As biografias exigem algum distanciamento, que se percebe não existir na vossa relação. Foi muito difícil biografar o seu irmão?
Helena (H) Não, porque optei por contar o máximo possível de histórias em vez de dar opiniões. Felizmente, não faltam histórias à volta dele. Começando pela nossa mãe – que sempre as contou para que as memórias não se perdessem, tendo muitas ficado registadas no livro de bebé: que ele adorava sopa de feijão e era guloso –, passando pelos nossos irmãos, que me ajudaram muito, os amigos, os próprios sobrinhos e todos os meus entrevistados. Escrevi três vezes mais do que ficou, tantas são as histórias do Zé Pedro e as facetas da sua vida. Por isso, este livro mais do que uma biografia, é um contar de histórias sobre o meu irmão. É assim que eu gostaria que as pessoas o entendessem.
Ao longo do processo de pesquisa, descobriu muita coisa que não sabia sobre ele?
H. Imensa coisa. Por exemplo, teve piada a história da Xana [dos Rádio Macau, que viveu com o Zé Pedro], de ele gostar de bricolage, que eu não imaginava. Ou a do Kit, um amigo dele que vive nos EUA e descobriu uma carta de 1988, na qual ele dizia que ainda havia de ser condecorado pelo Presidente da República, achei delicioso, são aqueles sonhos do meu irmão que acabam por concretizar-se. Ou a história de como o Alex [dos Rádio Macau, que viria ser sócio do Zé Pedro no mítico Johnny Guitar] o conheceu no 1º de Maio de 1974, um punk de anorak amarelo cheio de crachás no meio dos trabalhadores, e que o deixou pasmado porque não havia punks em Portugal, naquela altura… coisas que nunca tinha ouvido contar dele e que me surpreenderam.
E para si como foi ler o livro?
Zé Pedro (Z.P.) – Fascinante. A Leny queria mostrar-me, perguntou-me se eu queria acompanhar o processo e eu disse logo que não, não queria ter nenhuma influência directa sobre o resultado. No fim, quando o li, tive surpresas fascinantes, a começar pelas cartas dos meus colegas dos Xutos & Pontapés a falarem de mim daquela maneira, emocionaram-me bastante. E depois as opiniões de tantos amigos, o relembrar de histórias passadas. É um privilégio ter uma irmã que consiga escrever assim a minha história toda e eu chegar aos cinquenta anos e perceber: Eh pá, já fiz isto tudo!
«Com a minha doença sinto que tive uma segunda oportunidade de vida, mas a primeira parte, antes do intervalo, já está toda registada.»
O comum dos mortais passa a vida sem saber o que os outros pensam dele…
Z.P. Pois, também há esse lado, mas acima de tudo é bom ver ao longo do livro a quantidade de amigos e de ligações que se criaram, laços que não são familiares, mas de amizade, amores que passaram, mas que foram tão importantes na altura… Com a minha doença sinto que tive uma segunda oportunidade de vida, mas a primeira parte, antes do intervalo, já está toda registada.
H. Consegui fazer-lhe algumas surpresas, como essa das cartas dos outros Xutos. Um segredo muito bem guardado desde os anos dele [14 de Setembro]. O Zé Pedro, em contrapartida, fez-me a surpresa de escrever o prefácio. Mesmo em cima da hora disse-me que o faria, e fê-lo bem engraçado, muito ao estilo das nossas conversas caseiras.
Já voltou a ler o livro? Se começasse de novo, mudava alguma coisa?
H. Olhe, achei imensa piada a lê-lo, pensei: fui mesmo eu que escrevi isto tudo? Foi muito engraçado, não lhe sei explicar o sentimento…
E defeitos, o seu irmão tem defeitos?
H. Tem, tem, e estão no livro.
Z.P. Eu pedi-lhe muito para não me estar sempre a elogiar.
H. Ele estava preocupadíssimo que eu só o elogiasse, mas lá está, optei por contar, e pedir às pessoas que contassem, histórias sobre ele, foi um processo alegre e divertido. E agora as pessoas lerão e farão o seu próprio juízo, sem serem encaminhadas num ou noutro sentido.
Na introdução, diz que começou a escrevê-lo após a morte do seu marido, como forma de terapia. Resultou?
H. Ajudou-me imenso. Acho que é um bocadinho de família, com ele também foi assim, em vez de nos deixarmos deprimir, reagimos sempre ao contrário, pela positiva. Penso que é essencial nunca ceder à depressão, ao isolamento. Comecei a escrever, nunca com a ideia de publicar, mas depois ele numa entrevista disse que eu estava a escrever uma biografia dele e entalou-me.
«Não me arrependo de nada»
Num livro sobre a vida começa com a notícia de quase morte do seu irmão. Porquê?
H. Porque foi um momento muito intenso para mim – ainda na noite anterior tinha estado com ele numa festa –, e quando recebi o telefonema da Xana e da Marta Ferreira [manager dos Xutos & Pontapés, recentemente falecida] a dizer que ele estava no hospital, entre a vida e a morte, faltaram-me as forças nas pernas, caí no chão e não me conseguia levantar. Nunca esquecerei aquele baque. E mesmo depois de ele estar livre de perigo durante um ano não voltei a ler jornais ou a ver televisão com medo de receber a notícia da morte dele. Seria uma morte à roqueiro, em todo o caso.
Zé Pedro, há pouco dizia que sente que lhe foi dada uma segunda oportunidade. O que mudou na sua relação com a vida e com os outros?
Z.P. Acima de tudo, recuperei a autoestima. Foi muito importante não ter de deixar nada do que gosto realmente de fazer. Se tivesse que deixar a música e os concertos, seria muito mais difícil de aguentar. Vivi com grande intensidade as drogas e o álcool, mas nunca perdi de vista os meus interesses: os Xutos & Pontapés, o Johnny Guitar, nos anos noventa, a música, sempre. Mesmo assim, o ano de 2001, antes da hospitalização, em Agosto, tinha sido muito doloroso, sentia-me apagado, vazio, não tinha orgulho na pessoa em que me estava a tornar. A partir do momento em que fui hospitalizado e o médico me disse que nunca mais podia consumir álcool ou drogas foi fácil tirá-los da minha vida. Nunca mais toquei em nada. Mas não me arrependo de nada do que fiz, foram grandes momentos, ficam nas memórias.
«A heroína é uma droga totalmente à parte das outras, não é nada criativa, embora as pessoas achem que um mundo novo se abre, é tudo mentira. Toma conta da nossa vida e não leva a nada.»
Já tinha tido uma experiência de dependência de heroína, ultrapassada com a ajuda da sua mãe, que lhe pediu que não procurasse a morte quando ela lutava tanto para a manter afastada [tinha cancro]. Porque é que anos depois volta ao consumo problemático de drogas e álcool? É impossível controlar os consumos?
Z.P. Nunca mais voltei a meter heroína na vida. A heroína é uma droga totalmente à parte das outras, não é nada criativa, embora as pessoas achem que um mundo novo se abre, é tudo mentira. Toma conta da nossa vida e não leva a nada. Não é que as outras drogas levem a alguma coisa, mas a heroína não leva mesmo a nada. O que eu gostava mesmo muito era de beber, tinha bom beber, e quando se bebe muito, a cocaína começa a entrar com alguma facilidade e claro que depois isto leva a exageros e entra-se num ciclo complicado, mesmo para mim, que tenha uma cabeça especial, não muito dada a dependências.
Faz muitas sessões de esclarecimento com jovens, sobre este assunto. Adianta alguma coisa? Ouvem-no?
H. Posso responder eu? É que já assisti a algumas dessas sessões e os miúdos ouvem-no, e sobretudo fazem perguntas que se calhar não fariam aos pais ou aos professores. Outro dia, uma amiga telefonou-me toda contente a dizer que queria agradecer ao meu irmão, porque o filho veio da escola a pedir que lhe comprasse uma prancha de surf porque o Zé Pedro dos Xutos tinha dito que o melhor, para não se meterem na droga, era comprarem uma guitarra ou uma prancha de surf, e como ele não sabia tocar queria uma prancha. Os Xutos & Pontapés funcionam como elo de ligação entre gerações.
Como é que a família, e a Helena em particular, assistiu a este caminhar para o abismo?
H. Ele preservou muito a família, o pai e os sobrinhos, em particular, por isso não nos apercebemos bem do se estava a passar. Talvez por isso tenha sido um choque tão grande para mim. Mas penso que o Tim e o Kalu têm razão quando dizem que ele tinha que fazer o caminho dele, tinha que ir até ao fim. Espero que não volte a pregar-nos nenhum susto.
Pais, vou ser uma rockstar
Uma das coisas que se fica a saber pelo livro é que só aprendeu a tocar guitarra depois de já ter formado os Xutos & Pontapés. Como é que alguém que não toca, tem a coragem de formar uma banda, da qual é o guitarrista?
H. A lata, quer você dizer…
Z.P. Lá fora era o auge do movimento punk, que tinha como lema o «faça você mesmo» e sob esse estado de espírito as pessoas desataram a fazer coisas, vivia-se uma revolução cultural em que a arte era restituída ao povo, a quem deve pertencer realmente, e não a uma elite de subsidiados, que faz arte para o seu umbigo. O punk trouxe a liberdade artística a toda a gente. A mim, felizmente, aconteceu-me formar uma banda. Em 1977, depois de participar num festival punk em Mont-Marsan, França, cheguei a Portugal, arranjei uma guitarra, e comecei logo a fazer músicas. Quando formei a banda já tinha aquelas músicas todas, era o patrão, dizia: vocês tocam assim e assado, e aconteceu. Não saber afinar guitarras era o meu principal problema, felizmente apareceram os afinadores automáticos…
Um dia chegou a casa e disse que ia ser uma estrela do rock. Qual foi a reacção da família?
Z.P. A minha mãe achou muito bem, o meu pai disse, sim, podes ser uma rockstar, mas vê lá se arranjas um emprego.
H. A mãe teve muita culpa. Nós não sabíamos o que ele queria dizer com aquilo, mas como a mãe disse que se o que ele queria ser era rockstar, que fosse, que ela lhe dava todo o apoio, nos embarcámos todos nisso. Ele tinha tanta energia e aparecia com tantas ideias malucas, que pensámos que aquela era mais uma das ideias dele.
«Fui escriturário e ia vestido à roqueiro, com as correntes e as pulseiras e tudo. E cheguei a tesoureiro, cem contos à minha responsabilidade por semana.»
Mas teve de seguir o conselho do seu pai e arranjar um emprego. Foi escriturário durante anos. Inimaginável…
Z.P. Fui escriturário e devo dizer que não ia com o alfinete na boca para o emprego, mas ia vestido à roqueiro, com as correntes e as pulseiras e tudo. E cheguei a tesoureiro, cem contos à minha responsabilidade por semana. Quando tenho que fazer as coisas, faço-as bem. Também fui crítico de música n’ A Mosca, o suplemento do Diário de Lisboa, que era do nosso tio Ruella Ramos, antes já lá tinha trabalhado no arquivo e a distribuir bilhetes de cinema. Quando me tornei punk trabalhei numa empresa de distribuição de publicações, que distribuía desde a Heidi à Tele-Culinária, onde cheguei a fiel de armazém.
H. É esta a atitude dele, se tem de fazer, então empenha-se e faz bem.
Z.P. Ao menos tiro gozo. Com aquela atitude de baixar os braços e andar para ali a arrastar-se, sem fazer, nem deixar de fazer, o passar das oito horas de trabalho é ainda mais complicado.
«A casa confunde-me um bocadinho»
Os Xutos sem o Zé Pedro não existem, disse o Tim, em 2001, quando esteve hospitalizado. Ao ler este livro, fica-se com a ideia que o Zé Pedro é a alma da banda. Sente o peso dessa responsabilidade?
Z.P. Os Xutos não existem sem nenhum de nós. Recentemente, perdemos a Marta Ferreira, que foi quem nos agarrou e puxou para cima quando a banda estava de rastos [1990], cada um para seu lado: o Tim tinha ido para os Resistência, eu tinha aberto o Johnny Guitar, ao qual o Kalu veio juntar-se mais tarde, tínhamos levado uma banhada do manager, que nos roubou, estávamos na ressaca do Circo de Feras e do 88, anos muito intensos, com cerca de cem concertos por ano, numa altura em que ainda não havia autoestradas, e tudo isso levou a um afastamento. A Marta conseguiu unir-nos e pôr os Xutos onde eles estão hoje. Infelizmente morreu. Sem ela é mais difícil, mas não sendo músico efectivo dos Xutos, podemos continuar. Mas se um de nós, eu, o Tim, o Kalu, o João ou o Gui, estivesse impedido de tocar por alguma razão, os Xutos acabavam. Eu posso ser o ideólogo da banda, mas o Tim é o arquitecto das músicas, o Kalu é a nossa força, com aquele lado selvagem, a guitarra do João Cabeleira é que dá cor às músicas, o Gui dá-nos o humor. Cada um tem o seu papel bem definido e os Xutos & Pontapés não funcionam sem este conjunto de músicos a tocar e a compor.
Como é que a irmã, e a família, se relacionam com a família adoptiva do Zé Pedro: os Xutos & Pontapés?
H. São óptimos, têm todos um humor muito saudável. Depois têm a sua privacidade que não vendem por preço algum, nem às famílias, há ali um bloco que funciona entre todos e ao qual ninguém tem acesso. Mas quando convivem são óptimos companheiros.
Z.P. Somos uns pândegos.
Como é viver sempre na estrada?
Z.P. É óptimo, para mim é facílimo, mais fácil do que viver em casa. Gosto de ter a casa arrumada e tento arrumar o máximo possível, mas volta e meia torna-se um caos. Quando vou para a estrada só posso levar determinadas coisas e nos hotéis tenho que ter tudo debaixo de controlo para não me perder, portanto acabo por ter uma arrumação mais de quarto de hotel do que casa. Às vezes a casa confunde-me um bocadinho.
Os Rolling Stones são a vossa referência…
Z.P. Minha, mais minha do que dos outros.
«Quando ando na rua sozinho, as pessoas têm muito respeito por mim. Sempre que vou ao talho, dão-me os melhores bifes, no café não me deixam escolher um croquete que não seja acabado de sair.»
Mas vocês serão o equivalente português aos Rolling Stones. Seria impossível esta entrevista num Hard Rock Cafe, a funcionar normalmente, ao Mick Jagger, sem uma legião de seguranças a impedirem que milhares de fãs se aproximassem. O que é ser uma estrela do rock em Portugal?
Z.P. Os Stones têm uma exposição planetária muito grande, para além de já terem quase o dobro dos anos de carreira que nós. Mas de facto os Xutos & Pontapés andam à vontade na rua. O nosso crescimento foi suave e bom. Penso que sempre soubemos gerir bem a distância entre nós e as pessoas. Quando ando na rua sozinho, as pessoas têm muito respeito por mim. Sempre que vou ao talho, dão-me os melhores bifes, no café não me deixam escolher um croquete que não seja acabado de sair, se for preciso mandam-me passar à frente nas filas, sinto-me protegido. Andar no meio das outras pessoas para mim é fantástico e, em Portugal, faz-me impressão ver tantos músicos afastados da realidade das pessoas sem se conseguirem misturar. Mas isso depende de cada um.
Sempre à espera do próximo concerto
É homem de muitos amigos?
Z.P. De muitos amigos não, mas de grandes amigos, sou.
O que é que não perdoa a um amigo?
Z.P. Nunca os deixo chegar ao ponto de me traírem. Os que entram no meu círculo de amigos, aqueles a valer, nunca me trairiam, tenho a certeza absoluta.
O facto de vir de uma família de sete irmãos contribuiu para a segurança e determinação com que avançou para a concretização dos seus sonhos?
H. Somos sete irmãos, mas com apenas onze anos de diferença entre o mais velho e o mais novo, e temos a particularidade de na infância termos andado sempre em viagem, a nossa mãe sempre quis acompanhar o meu pai (oficial do exército) para as suas missões. Portanto, sempre fomos todos muito amigos, eu e o Zé temos uma diferença de onze meses e um dia, tínhamos que partilhar, não havia espaço para egoísmos.
Z.P. As semanadas eram menores..
H. E por isso mais estimadas e bem aplicadas, sem esbanjamentos. Há uma série de tácticas e estratégias que os filhos das grandes famílias têm de criar que lhes servirão ao longo da vida. O Zé Pedro e a nossa mais nova, a Patrícia, dizem muitas vezes: quando é para dividir, é um tostão a cada um, mas quando é preciso ajuda, são seis ajudas muito fortes, acrescidas das pessoas que vivem connosco. É uma multidão. E a geração de sobrinhos que já vai na mesma, pior do que nós.
«O dinheiro para mim serve sempre à medida que o tenho. A única coisa chata no dinheiro é quando tem de se pensar nele, para pagar isto ou aquilo, e só o facto de não ter de pensar nisso já é um luxo.»
Vem de uma família grande. Porque é que nunca teve filhos, foi uma opção?
Z.P. Não, nunca aconteceu, mas estou com esperanças
Está com esperanças, não de esperanças?
Z.P. Tenho a certeza que virei a ser pai, mas não tenho pena de ainda não o ter sido
H. Tem os sobrinhos, que o mimam muito, muito.
Há pouco falava das semanadas. A sua fortuna não chega aos calcanhares da do Mick Jagger, pois não?
Z.P. Não, não, é impossível chegar (gargalhadas).
H. Ainda não, ainda não.
Z.P. Mas, olha, não sei se era mais feliz, acho que não. O dinheiro para mim serve sempre à medida que o tenho. A única coisa chata no dinheiro é quando tem de se pensar nele, para pagar isto ou aquilo, e só o facto de não ter de pensar nisso já é um luxo. Nunca fui de grandes gastos, não tenho de que me queixar, sou um privilegiado. Acima de tudo o amor e a amizade que tenho à volta são muito mais compensadoras do que qualquer dinheiro.
Como é a vida de um roqueiro no intervalo da música?
Z.P. Namoro, tenho o meu tempo para a família e amigos, para ver filmes, para ler revistas [é consumidor compulsivo de revistas especializadas em música], ouvir rádio, uma paixão, ver televisão, ir aos festivais. Ando sempre entretido com essas coisas. Actualmente, o escritório ocupa-me muito tempo. Mas geralmente o intervalo dos concertos é sobretudo à espera do concerto seguinte.
H. Ele lê muito e aprende-se muito com ele porque ele depois conta as histórias todas.
Z.P. Gosto muito de histórias do rockn’roll e de filmes tipo puzzle, como o Memento, o 11 e 14, o Pulp Fiction, que adorei.
«É preciso trabalho e dedicação, mas sobretudo temos de estar muito atentos para nos desviarmos do azar e para apanharmos a sorte quando ela passa ao nosso lado.»
O jogo está muito presente nas suas letras. Acredita no destino, acha que a sorte e o azar determinam alguma coisa na nossa vida?
Z.P. Determinam tudo, uma pessoa pode ter muito boa vontade, mas se tiver azar não consegue nada.
Não somos nós que fazemos a sorte e o azar?
Z.P. Claro que temos de ter trabalho e dedicação, mas sobretudo temos de estar muito atentos para nos desviarmos do azar e para apanharmos a sorte quando ela passa ao nosso lado. Quando estamos mais descuidados connosco, a sorte nunca nos bate à porta.
H. Se não estivermos com atenção não damos por ela, não damos por nada, não damos sequer pela vida. Há pessoas que passam a vida inteira desatentas.
Z.P. Uma pessoa que se está sempre a queixar do azar atrai o azar – povo português é muito assim -, mas se disser: não, eu vou ser diferente, as coisas boas acontecem. Lembro-me perfeitamente da primeira conversa com o Kalu, em 1978, disse-lhe que íamos ser a primeira banda em Portugal e que ainda íamos fazer a primeira parte dos Rolling Stones. Bingo. E, pelos vistos, disse ao meu amigo Kit que ia ser condecorado pelo Presidente da República. As coisas aconteceram, porque acreditámos que era possível e trabalhámos para isso. Claro que não podemos ficar de braços cruzados à espera que algo aconteça.
Tem cinquenta anos, como imagina o resto da sua vida?
Espero vir a ser pai, casar, descansar um bocadinho, conseguir reservar um pouco mais de tempo para mim e continuar por muitos anos ligado aos palcos e à música. Mas acima de tudo continuar a ser músico.
E a Helena?
H. Como é que eu vejo a vida dele?
Z.P. Com a minha podes estar descansada, fala da tua.
H. Ainda bem que me descansas, que dizes que não te vais meter em mais sarilhos.
A crítica musical em Portugal é uma merda
O percurso dos Xutos & Pontapés foi feito com ou apesar da crítica?
Z.P. A crítica musical em Portugal é uma merda.
Posso usar isso assim, tal e qual?
Z.P. Podes, pelo seguinte: nunca se preocuparam, e continuam sem se preocupar, com o mercado português. O mais fácil é dizer mal. Mas o mercado português tem de ser construído por todos, editoras, músicos e críticos, que sem músicos não têm trabalho, coisa que parece que ainda não perceberam. Infelizmente, a crítica musical em Portugal é muitas vezes determinada por ódios ou simpatias pessoais, o que é ridículo. Eu sou assinante há anos da Rock & Folk, cujo director é o Philippe Manouvre, e uma vez li uma crítica dele ao segundo álbum dos Stroke em que ele dava cinco estrelas, o máximo, e explicava: não é que fosse o disco preferido dele ou que o considerasse o supra-sumo, mas achava que conduziria ao surgimento de uma série de bandas, porque era uma novidade tremenda. E foi isso que aconteceu, os Stroke abriram as portas para o novo rock. Um crítico deve ter esse tipo de lucidez, esse tipo de abordagem, e não andar cá com guerrinhas.






04 agosto 2017

A Revolução Tecnológica!


"A revolução tecnológica pode destruir 50% dos empregos"



Arlindo Oliveira admite que grande parte da privacidade do cidadão vai desaparecer com a revolução tecnológica / LeONARDO NEGRÃO/ GLOBALIMAGENS


















Fonte -   DN  





14 março 2017

Jorge Fernando


"Tirei a quarta classe com o Fernando Maurício e um curso superior com a Amália"






O avô era guitarrista de fado e ofereceu-lhe a primeira viola e os primeiros acordes. Deixou o grupo de baile pelo fado e acompanhou Fernando Maurício e Amália. Músico, fadista e produtor, tem a marca em dezenas de canções.

Comemora os 40 anos de carreira - na verdade, pelo menos 42 - com um espetáculo solidário no Meo Arena no dia 4 de maio, cuja receita reverte a favor da instituição Novo Futuro. No mesmo dia, é lançado o cd De mim para mim, que inclui um dueto com António Zambujo e a participação do filho. Jorge Fernando da Silva Nunes nasceu em Lisboa em 8 de março de 1957 e conta como escolheu o fado deixando para trás o futebol - foi internacional de juniores do 1º. de Maio Futebol Clube Sarilhense - e de cantor e viola ritmo de um grupo de baile. A decisão foi instantânea, quando, aos 15 anos, ouviu Fernando Maurício cantar numa matinée no Barreiro. Acompanhou Maurício e, poucos anos depois, Amália Rodrigues, para quem foi "como filho". Autor de muitas canções interpretadas por ele e por outros artistas.



Foi futebolista do 1º de Maio de Sarilhos Pequenos. Com o Diamantino e o Manuel Fernandes?
E o Oliveira.
Como aconteceu?
Sempre usei na minha vida fazer coisas. Desde menino que jogo à bola, desde menino que canto e toco. Comecei nos jogos juvenis com o Barreirense, depois fui para o 1º de Maio e encontrei todos esses que chegaram a internacionais também. O Frederico, que foi central do Benfica e da seleção nacional, é padrinho da minha filha Ana. Tenho ainda hoje uma grande relação com todos os jogadores de futebol, sobretudo com os desse tempo.
O futebol ficou para trás por causa do fado? O fado também começou muito cedo.
Desde que me conheço, desde os quatro ou cinco anos que cantava, por brincadeira como os outros meninos, por via do meu avô materno que tocava viola. Aliás foi ele quem me ensinou a tocar.
O marido da Ti Preciosa?
Exatamente, da minha avó Preciosa. Havia esse sentimento de que eu não faria outra coisa se não música, mesmo jogando à bola. Era o que falava mais alto dentro de mim. No tempo em que jogava futebol havia um problema, o facto de eu ser notívago. Continuo a ser, gosto da noite, nasci às 4:35 da madrugada.
Isso para o futebol não era grande coisa.
Não era grande coisa. A paixão pela noite sempre me perseguiu.
Isso quer dizer que adormece a que hora?
Depende. Se estiver muito cansado, cinco ou seis da manhã. Se não, vou um bocadinho até mais tarde.
E acorda a que hora?
Meio-dia, uma da tarde, duas. Os amigos mais de perto já sabem.
Começou a tocar guitarra em pequeno? Como apareceu a guitarra, de quem era?
É uma história muito bonita. Era uma Framus, uma guitarra alemã que o meu avô me comprou numa casa de penhores. Ele tinha a viola dele, com que tocava fado. Com 13 anos eu cantava num grupo de baile. Tive papeira e fiquei uma semana de cama. Foi nessa semana que o meu avô me comprou a viola e me ensinou a tocar.
Foi fácil, era intuitivo?
Depois dessa semana, voltei ao grupo de baile e já conseguia acompanhar, tocava viola ritmo. As dificuldades eram muito grandes, tínhamos de ter um investidor nos instrumentos, nos amplificadores, e fomos a correr comprar uma viola ritmo.
Que músicas tocavam? Era 1970.
Foi uma altura espetacular que me serviu de base a tudo o que faço na vida. Nós tanto tocávamos Pink Floyd ou Genesis como Roberto Carlos, Nelson Ned, Deep Purple. Os bailes tinham essa vertente. Fazíamos aquelas séries mais românticas, depois tocávamos outras mais mexidas.
As séries mais românticas eram "para constituir família"?
Eram as preferidas dos casaizinhos. Quem não tinha possibilidade de se tornar casal nos bailes também gostava de ouvir as músicas que se tocavam. Foi uma altura de grande criatividade a nível mundial, de bandas extraordinárias, cada uma diferente das outras. Isso serviu-me de base e de preparação para o que viria a seguir.
Aprendeu sozinho ou chegou a ter aulas?
Sempre sozinho. As únicas aulas que tive foi com o meu avô. Foi a minha curiosidade que me levou a aprender. Eu hoje leio uma cifra mas posso dizer que nunca ninguém me ensinou. Através da dedução fui aprendendo a ler e a procurar acordes, foi intuitivo.
Os 40 anos de carreira são 42, porque aos 18 anos teve carteira profissional.
No meu tempo, para se cantar ou tocar numa casa de fado era preciso ter carteira profissional, tínhamos de fazer um exame. E só se podia aos 18. Não podíamos tocar e cantar profissionalmente antes disso.
Mas tocava e cantava?
Sim, tocava e cantava na mesma.
Aos 16 anos, conheceu o Fernando Maurício. Como aconteceu?
Foi um enorme privilégio. Num domingo à tarde, estávamos a ensaiar na garagem - uma banda de baile tem de estar sempre atualizada, sai um êxito e temos de ir a correr tocá-lo porque as pessoas vão pedir nos bailes, querem dançar aquilo. Vieram dizer-me - está ali o rei do fado. Quem é? O Fernando Maurício. Quando fui para o grupo de baile a minha ligação já não era tão intensa, tão próxima, mas pensei "deixa-me lá ouvir o rei do fado".
Foram ouvir onde?
Numa casa de fado que estava a dar uma matinée, próximo da garagem onde eu ensaiava, no Barreiro. Foi paixão absoluta. Ouvi-o cantar e a partir daí voltei para o fado.
Acabou-se o grupo de baile?
Acabou o grupo de baile, sim.
Tiveram de arranjar outro guitarrista?
Não, eles fecharam mesmo a loja.
Nunca mais soube deles?
Deixaram todos de ser músicos, seguiram vidas diferentes. Voltou-me a paixão do fado que eu já trazia do berço. Quando ouvi o Fernando fiquei de boca aberta, era fascinante.
Daí a ser guitarrista dele foi um grande passo?
Demorou pouco tempo. Estou a reportar-me aos meus 15 anos, e aos 16 eu já tocava com ele. Estabelecemos ligação. No fundo, eu nunca deixei de sentir qualquer coisa pelo fado. O primeiro tema que faço, aos 15 anos, foi a música d" A Trigueirinha.
Passou a acompanhar o Fernando Maurício e isso foi uma mudança de vida? Deixou os estudos?
O Fernando tinha uma casa de fado onde cantava, a Adega Mesquita, mas eu tocava com ele nos espetáculos que eram normalmente ao fim-de-semana. Continuei a estudar, acabei o curso geral de administração e comércio. A minha mãe detestava que eu tocasse e cantasse, não via isso com bons olhos.
Queria que o Jorge fizesse o quê?
Eu era bom aluno, tinha grandes notas, e ela queria que eu me formasse. O sacrifício enorme que os pais faziam era no sentido de que os filhos se formassem para que viessem a ter uma vida mais fácil, como eles não tinham tido. Só por volta dos 20 anos, quando comecei a tocar com a Amália, é que ela desistiu de me pressionar.
É um bocadinho arrasador estar a falar com alguém que aos 20 anos já está a tocar com a Amália, depois de ter começado com o Fernando Maurício. Entrou pela porta dourada.
A vida às vezes presenteia-nos com coisas inesperadas e eu na vida fui presenteado com coisas enormes, as minhas verdadeiras medalhas. Desde gravar com o Egberto Gismonti a fazer um dueto com o Lucio Dalla, e todos os portugueses: o Fausto, os Expensive Soul, o Sam the Kid... São esses presentes que me fazem estar sempre em estado de graça e de gratidão para com a vida.
Isso dá muito trabalho, não cai do céu.
Mas não nos damos conta porque estamos a fazer uma coisa de que gostamos. Quando estou a compor um tema estou a trabalhar, mas não é esse o sentido da palavra trabalho. Será uma questão de semântica, mas o sentido da palavra trabalho para mim não é esse. Porque quando estou a compor estou a ter um prazer dolorido. Compor dói um pouco.
Em que sentido?
Antes de compor sinto um leve peso na zona do estômago, do umbigo, uma dorzinha. Ando atrás da palavra certa, é uma certa moinha cá dentro. A melodia é um encadeamento de frases, procuro a palavra certa para o que quero dizer. Há ali um estado, um intervalo próprio, que é um prazer dolorido, aquele pesozinho sempre cá dentro, aquela ansiedade de pôr cá fora a palavra ou a frase musical.
Como é que isso acontece, como é que sabe qual é o momento?
É a chegada da dorzinha no estômago, no plexo solar, que me liga ao universo quando componho. Sou apenas um veículo através do qual estas coisas chegam. Tenho a certeza disto, às vezes escrevo coisas que não sei.
Explique lá melhor.
Posso dar um exemplo. No primeiro disco da Ana Moura um dos versos que escrevi é assim: "Que o amor ao possuir-me inocentiza-me o ser". Eu escrevi isso. Depois de a dorzinha passar eu disse que disparate, inocentiza?, isto não existe. Pelo sim pelo não, fui ao dicionário ver e realmente existe. Muitas vezes escrevo palavras que não tenho a certeza que existam, algumas não conheço. Atribuo o ato de criação a qualquer coisa que me ultrapassa, fazendo parte de um todo. Mas não me preocupa muito aprofundar porque esses caminhos levam às vezes para situações de embaraço intelectual, chamemos-lhe assim.
É escusado racionalizar, é isso?
Nunca vamos perceber, vamos desconfiar, ter ideias...
Tal como lhe aconteceu quando foi ouvir o Fernando Maurício e perceber que era aquilo que queria?
Sim, faz tudo parte disso. Os gregos têm uma palavra muito interessante - noure - que significa corrente de pensamento. Os grandes pensadores acham que todos os homens que falam do futuro a 500 ou 600 anos mergulham ou sobem até essa corrente de pensamento onde tudo está plasmado no éter cósmico. Há algum peso neste pensamento. O [profeta] João na ilha de Patmos ou Nostradamus que previu o futuro com uma exatidão tremenda... haverá aí qualquer coisa, o tal plasmar de tudo nos arquétipos. Isto leva-nos a grandes filósofos, Anaxágoras, Platão. Para mim basta-me ver que se deitarmos uma semente de uma oliveira não vai nascer um pinheiro, ou seja, naquela pequena semente também já está plasmado o que ela vai ser. É por aí que a composição anda.
A dor de barriga é na fase da escrita. E o momento de cantar em público, a partilhar com outros?
É um processo alquímico, tudo se eleva quando há comunicação, quando conseguimos dar aquilo que pretendemos em termos energéticos. A onda bate, volta e vem reforçada e nós transcendemo-nos. O canto é um poder de manifestação enorme. A música serve para levar as palavras e nós temos de ter a noção do que damos às pessoas. A música é um fator muito importante em tudo o que fazemos na vida. Não podemos imaginar um filme sem música, por exemplo. Mesmo que não demos por ela, ela está lá e transforma o filme noutra coisa. A Amália disse uma coisa muito bonita, revejo-me nas palavras dela. Numa entrevista - eu estava presente e já contei isto a muitos colegas, gosto de contar as coisas que aprendi com ela e com outras pessoas - perguntaram-lhe o que pensava quando cantava. E ela disse: "Se eu pensasse não cantava". É esta ausência de ego que faz com que aquilo a que chamamos alma, coração, seja o que for, se entregue da forma como ela se entregava. O ego não está a pensar "agora vou fazer esta voltinha", se pensa assim a voltinha já foi.
Mais uma vez, não pode racionalizar?
Não convém.
Como era a Amália com os seus guitarristas?
Se existe qualquer coisa a que nós chamamos deus - temos de ter uma palavra para chamar essa entidade superior - ele não pode ser justo porque pôs tudo dentro da Amália e tão pouco dentro de nós. A Amália era um ser humano onde tudo estava. É difícil uma pessoa ser inteligente e arguta ao mesmo tempo, uma coisa colide com a outra, mas ela era.
E tinha aquela voz.
O seu canto revela a inteligência, o bom gosto, a afinação, o swing, estava tudo dentro da Amália. A nossa relação era familiar. Eu não sou muito ligado ao passado mas gosto de algumas recordações. E uma das que mais gosto é o que ela escreveu no primeiro cd que gravei com ela - Amália volta a cantar Frederico Valério: "Jorge Fernando, gosto de si como filho". Nem sequer era como um filho, ou seja, se a Amália tivesse tido um filho gostaria que tivesse sido eu. Isto para relatar como ela era connosco.
Ler uma coisa dessas dá para uma pessoa ficar a pairar?
Claro que sim. Foram anos de aprendizagem sublime com ela. Nós crescemos através das experiências e se eu não tivesse tido a experiência de estar com a Amália não seria a mesmo pessoa.
E com o Fernando Maurício poderia dizer uma coisa parecida?
Tirei a quarta classe com o Fernando e fui para o curso superior com a Amália.
O fado é uma grande parcela na sua vida mas há também o que veio dos tempos dos grupos de baile. O fado tem as suas regras mas juntou-lhe outras influências?
Nunca deixei de ouvir outras músicas, não sou capaz de estar fechado em nada, nem em casa. O fado tem as suas regras, e atribuem-me ter quebrado essas regras. Trouxe a bateria para o fado quando em 1996 fiz o primeiro disco, bateria conceptual com elementos da Brigada Victor Jara. O Quiné [percussão] e o André Sousa Machado [bateria] foram os pais do ritmo no fado. Essa minha inquietude leva-me sempre a quebrar as regras do fado.
As regras são para ser quebradas?
Eu penso que sim. Na existência, só a mudança é que não muda, tudo está em constante mudança. Para alguma gente, que eu respeito, o fado não pode sair daquilo. E para mim o fado é uma questão de alma. Se nós ouvirmos o disco que a Amália gravou na Broadway, a cantar o Summertime, nós sabemos que o Summertime não é um fado, mas temos a certeza absoluta de que é uma fadista que está a cantar. Ali há fado. Não se pode desligar - agora há fado, agora não. Ou se é ou não se é. Sou o quebrador de regras, fiz fado com rap com o Sam the Kid, uso vozes como o Dino d"Santiago no fado, tudo coisas que ninguém fez e eu gosto de as fazer. Parafraseando uma entrevista do Piazzolla, com quem concordo plenamente, pode-se mudar a forma não tocando no conteúdo. Mudamos a forma de vestir mas o fado tem de lá estar.
É isso que lhe possibilita cantar com o Lucio Dalla ou com o Egberto Gismonti?
Todos esses duetos que fiz. Faça eu o que fizer, está sempre presente o fado. Aliás, a primeira vez que fui ao Festival da Canção [em 1983, Rosas brancas para o meu amor] a crítica mandou-me para casa, dizendo: "isto não é um balão de ensaio para o fado". Continuei a gravar e diziam que soava sempre a fado.
Com o Umbadá não o compararam com fado, em 1985.
O Umbadá não.
Foi outra vez ao Festival em 1990, com Via Aérea, e passou vários anos sem ir.
O próprio festival decadentou-se - será que a palavra é correta?
E voltou neste ano.
Voltou neste ano numa tentativa de torná-lo o que foi, o que me parece impossível porque as coisas não voltam a ser o que eram, o festival tem de ser outra coisa. E em boa hora participei. O festival cumpriu o seu desígnio com a descoberta pelo país do Salvador Sobral. Valeu a pena para ouvir essa música lindíssima, essa letra da Luísa [Sobral], e ouvir o Salvador cantar desta forma.
E gostou de participar, daqueles nervos?
Gostei, mas gostei mais que o Salvador tivesse ganho por uma questão de justiça. Ele merecia de longe ganhar, estou felicíssimo por isso. Também feliz pela participação da menina de 18 anos [Beatriz Felício] que eu descobri, porque toda a gente se encantou com ela, com o seu canto, e penso que um dia ouviremos falar dela.
Os 40 anos de carreira vão ter um espetáculo de comemoração solidário, cujas receitas são para a instituição Novo Futuro. Como conheceu esta instituição?
Em boa verdade, conheci através do meu amigo Luís Montez. É uma pessoa de quem gosto muito e com quem tenho muita afinidade, é um visionário. Fazer uma rádio de fado [Rádio Amália], quem é que teve essa visão antes dele? Fazer o Caixa...
Os festivais Caixa Alfama e Caixa Ribeira?
Adoro as pessoas visionárias porque enquadro-me um pouco nisso. Quando sinto que tenho de fazer um fado com o Sam the Kid estou nesse campo, então temos essa afinidade. Ele resolveu atribuir-me o espetáculo Novo Futuro deste ano, como homenagem às minhas canções. Tenho por ele, além de apreço, uma grande gratidão porque em várias fases da minha vida ele mostrou a amizade que tem por mim. Vamos fazer uma festa muito bonita. Nunca me preocupo muito se as casas estão cheias ou não mas neste caso...
É o Meo Arena, encher aquela sala mete respeito...
Não penso que encherei o Meo Arena com outros artistas portugueses, mas espero uma boa casa, pelo menos, para que a receita seja boa para a Novo Futuro, é isso que me preocupa.
São tudo canções suas?
Tudo canções minhas.
E vai cantar em duetos com os convidados?
Vai ser tudo em dueto
Estão anunciados o Agir, a Ana Moura, o Camané, os Expensive Soul, a Fábia Rebordão, o José Gonçalez, o Sam the Kid e o Virgul com o Dino D"Santiago.
O Virgul e o Dino faziam parte dos Nu Soul Family que gravaram no meu último disco o single Desespero.
É uma espécie de reunião de família?
É a palavra exata. O que me apaixona mais na música é que todas as minhas viagens e incursões por zonas diferentes nos tornam familiares. Ficamos amigos depois de nos conhecermos, tornamo-nos como família. É a dádiva maior da música.
Poderíamos pensar que haveria aí muitos egos, mas não parece que isso se passe nesse grupo.
Esses meus queridíssimos irmãos musicais estão na música pela música, o que é diferente de nos servirmos dela. É evidente que todos nós vivemos da música, gostamos de ter êxito, ficamos felizes quando somos apreciados. Mas todos nos damos a sério à música.
Como se prepara para um dueto? Ensaiam antes? Por exemplo, com o Lucio Dalla ou a Ana Moura?
A história do Lucio Dalla é muito bonita. Um dia recebi um telefonema em italiano - por acaso falo italiano, graças aos anos em que andei com a Amália pelo mundo todo. Telefonou-me um senhor que era secretário do Lucio Dalla. Ele tinha um movimento de defesa dos oceanos nas ilhas Trinity e convidava-me para cantar com ele. Andou a pesquisar na net.
Uma pessoa de repente recebe um telefonema assim...
Ameaçador?
Não, dá a sensação de vir do além.
Daí a ameaça. E eu disse com certeza, com muito prazer. Depois foi o próprio Lucio Dalla que me telefonou: "Tenho um tema com letra portuguesa, podíamos cantá-lo juntos, posso mandar-te?" Qual não é o meu espanto quando o tema chega. Era uma canção que eu cantava desde menino: Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar, ou seja, a Minha história, que eu pensava ser do Chico Buarque. A música e mesmo a letra eram do Lucio Dalla, o Chico fez uma tradução. Quando os artistas do Brasil fugiram...
...por causa da ditadura militar...
O Caetano foi para Inglaterra e o Chico foi para casa do Lucio Dalla em Itália. O Lucio ia concorrer ao festival de San Remo com esta canção mas foi censurada, teve que mudar a parte final. A primeira e última vez que ele gravou a canção exatamente como a escreveu foi comigo. No final em italiano ele diz E ancora adesso che gioco a carte e bevo vino /per la gente del porto mi chiamo Gesù bambino. Isto é, entre jogos de cartas e vinho, para as pessoas do porto eu sou o menino Jesus. Mas ele tinha escrito uma coisa mais trágica que está no nosso dueto. [E ancora adesso mentre bestemmioe bevo vino
per i ladri e le puttane sono Gesù bambino - entre blasfémias e vinho, para os ladrões e as putas sou o menino Jesus]
. O título da canção é 3-4-1943, a data do nascimento do Lucio, e a mãe dele era prostituta. É a história dele.
Tem um disco pronto para sair?
Sai a 4 de maio para comemorar os 40 anos.
Está anunciada uma canção chamada O lobisomem. O que é?
O lobisomem é uma crendice popular, uma pessoa que à noite se transforma em animal, em lobo. Eu conto a história do lobisomem e dois versos à frente desmistifico, não acredito nisso.
O que tem mais no disco novo?
Coisas novas. Vou ter um dueto com o Tozé Zambujo, de quem sou grande fanzaço.
Mais conhecido por António Zambujo?
Há tantos os anos que somos amigos, foi sempre o Tozé. E terei a participação do meu filho, o Jorge Nunes.
O Jorge Fernando da Silva Nunes tem um filho que é o Jorge Nunes?
Sim, Jorge Fernando é o meu nome e tornou-se nome artístico.
Como apareceu a ligação com o Sam the Kid, um rapper no mundo do fado?
Tudo é fácil quando passa pelo pormenor, pela ativação através da chamada paixão. Ouvi a primeira vez o Sam the Kid na rádio e disse "que caneta é esta, quem é este rapaz que escreve desta maneira?" Foi o rastilho. As coisas encadeiam-se desta forma na minha vida. Um dia estou a compor e sai um tema que me fez pensar que era interessante meter o rap no meio. Disse ao Nuno Miguel Guedes, jornalista, que gostava de falar com o Sam the Kid. Quando lhe mostrei o tema, foi imediato, disse que entrava.
Como se chama o disco?
O título genérico é De mim para mim. Como estou sempre a mexer nas coisas - e pago a fatura - trago o eletrónico ao fado também. O Agir e o Fred estão a fazer as programações.